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Mulheres na construção do direito à moradia


Isis Medeiros

Na comunidade da Pedreira Prado Lopes, são elas que põem o corpo, a cara e coração para ocupar e conquistar o território.

“Dorme filha e vamos sonhar.” – disse a mãe. A menina, sentada no chão do galpão onde a mãe havia estendido o colchão, me olhava de longe. Saltei alguns colchões e cheguei mais perto dela, curiosa pra saber o que estava sentindo e perguntei: “ - Você vai dormir? E com o que você vai sonhar?” “ - Não sei.” – respondeu rápido e logo pairou alí um silêncio buscando outra resposta. A mãe, puxando pelo abraço e já arrumando a coberta onde ela iria deitar, insistiu: “Vem, filha! Vamos sonhar com a casa nova!” Ela, ainda inconformada com a resposta da mãe, disse que não. Eu perguntei o porque. “ – Sonhar não, porque se sonhar, não vai realizar.” Respondeu certeira e olhou novamente para a mãe. Depois voltou o olhar para mim quando eu dei um sorriso e disse: “ - Dorme então! Amanhã, ou melhor, daqui a pouquinho você já vai acordar na casa nova.” Ela deitou a cabeça no amontoado de panos preparado pela mãe, a abraçou e dormiu logo em seguida.

7 de Setembro de 2017.

Madrugada do dia de comemoração da "Independência" do Brasil. Subindo o morro da comunidade Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte, um grupo já se concentrava momentos antes do início da Ocupação Pátria Livre. Alí o cenário já escancarava a realidade: a luta é mesmo substantivo feminino! Dentre as famílias que iriam ocupar o prédio abandonado na rua Pedro Lessa, viam-se poucos homens. As protagonistas da nova ocupação, afirmavam que os maridos haviam ficado em casa, e só iriam se juntar caso "essa luta desse certo mesmo".


Isis Medeiros

Alí na concentração, já dispostas e na missão, carregavam no colo as crianças e dividiam umas com as outras a tarefa do cuidado e da responsabilidade de um ato difícil, o receio de alguma ação de repressão da polícia e do fracasso na ocupação. Mas iam de qualquer forma. Iam carregando colchões, roupas, brinquedos e mantimentos, elas largaram em casa os maridos, mas traziam consigo a força e os filhos.

Enquanto as famílias adentravam a construção ainda sem energia elétrica, a pergunta que ia martelando naquelas cabeças e vez ou outra alguém sussurrava em voz alta: "se há tanta casa sem gente, porque há tanta gente sem casa?" ia se repetindo madrugada adentro no escuro e silêncio que se tentava manter pelos cômodos e escombros adentro.


Uma camada espessa de pó, pedaços de vidro e latas pelo chão iam sendo varridas, dando caminho às crianças que assustadas e curiosas iam se aproximando em silêncio guiadas pela luz das velas naquele novo cenário à descobrir, novos caminhos por onde as mulheres iam estacionando malas, caixas e mantimentos. Já era possível olhar nos olhos e reconhecer cada rostinho que se iluminava uma nova esperança. Mas ainda faltava muito para o dia clarear e a expectativa era um pouco de ansiedade e insegurança com a chegada da manhã e da polícia.


Isis Medeiros

Foram as mulheres da comunidade da Pedreira que se organizaram para enfrentarem juntas o processo de ocupação de um novo território, um espaço abandonado e que há mais de 25 anos se encontrava de portões fechados sem cumprir sua função social. Virou desde então depósito de pó, escombros, fezes e mato, que tomou conta do entorto do prédio onde funcionou a empresa Engetel.


Segundo Valéria Borges, integrante do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD), a maioria das famílias que ocuparam o prédio são da região da Pedreira. O sonho das famílias pela casa própria vem reforçado pela dificuldade de se manter e manter a família pagando aluguel, que na região gira em torno de 600 a 900 reais. “Como é possível uma família pagar esse valor de aluguel ganhando apenas um salário mínimo?” Indagou ela.


Isis Medeiros

Segundo a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), toda propriedade deve cumprir uma função social, seja ela habitacional, ambiental, cultural ou econômica. Terrenos e imóveis que permanecem vazios não cumprem nenhuma função social e incentivam o processo de especulação imobiliária, que eleva o preço do solo urbano, gerando mais lucro para seus proprietários. Em Belo Horizonte e região metropolitana, a estimativa é de que hajam pelo menos 171 mil imóveis e terrenos desocupados, enquanto na cidade já se somam 160 mil famílias sem moradia. Essa situação fere a constituição brasileira, que diz do direito fundamental à moradia e à infância segura, e também do uso do território. Isso significa que o acúmulo de território em desuso e como forma de especulação imobiliária é ilegal e hoje a política habitacional vem sendo feita na pressão através dos movimentos sociais e do próprio povo que reivindica moradia diante da baixíssima produção habitacional na cidade. Além da negação de uso do espaço como direito fundamental, esses espaços desocupados são problema de saúde pública, pois prejudicam também as pessoas que vivem no entorno. Elas se sentem ameaçadas por animais como ratos e escorpiões que se acumulam no terreno, além desses terrenos também acumularem água parada e ajudarem na proliferação do mosquito da dengue, como reclamaram os vizinhos do prédio.


Com a chegada da manhã, veio também o rumor de que a polícia já se concentrava na entrada do prédio. Alí do portão já faziam perguntas questionando o motivo da ocupação enquanto faziam pressão para que todos saíssem. A partir daí ninguém entrava ou saía mais do prédio. Foram horas na expectativa de que a negociação fosse feita e a entrada liberada. Enquanto isso, a necessidade de água, que já ameaçava acabar. Um vizinho do prédio, jogou pela janela uma garrafa plástica através de uma corda, depois do pedido de socorro de uma das ocupantes, enquanto do lado de fora as crianças brincavam e se distraiam nas diversas atividades propostas pelo grupo responsável pela ciranda. Era o primeiro dia de muitos que viveriam juntas alí.


Do lado de fora do portão, crescia um cordão policial que ficou pressionando e impedindo a entrada de novas pessoas enquanto ameaçavam entrar no espaço que há tantos anos não era visitado e muito menos visto pelo Estado. Junto com a polícia, também ia chegando a comunidade, que demonstrava apoio e resistência à pressão. Lá de cima de uma das lajes mais altas da comunidade, um grupo de mulheres da comunidade surgiu entoando gritos e segurando uma bandeira vermelha em direção à ocupação. De lá, enviavam mensagens e entoavam músicas aos órgãos públicos que iam aos poucos chegando para dialogar na portaria do prédio: “Prefeito eu quero, prefeito eu quero morar! Sem moradia, sem moradia, sem moradia só me resta ocupar!”


Isis Medeiros

Isis Medeiros

Da parte de fora, cercadas e impedidas pela polícia de se aproximar, mais de 200 pessoas seguiam entoando o mesmo coro. Depois de quase 9 horas de negociação e tensão na entrada do local, o batalhão de choque da polícia de Minas Gerais recuou e cedeu espaço para que finalmente a comunidade pudesse acessar o local.

“Aiii meu Deus, nós conseguimos! Eu tô até agora muito emocionada! Não tô acreditando que a comunidade veio nos apoiar. Olha lá!”, apontava Valéria com lágrimas nos olhos em direção à laje da casa.

Com o recuo da polícia, se pôde ouvir por todos os lados um só hino entoado por todos: “O povo unido, jamais será vencido… O povo unido, jamais será vencido!”.


Começava ali, naquele morro, mais uma história real de luta pela efetivação de direitos, a conquista e independência de um povo.


Isis Medeiros

Texto: Isis Medeiros e Agatha Azevedo Fotos: Isis Medeiros


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