A onda das mulheres contra a Idade Média
Defensoras da lei do aborto, rejeitada pelo Senado Argentino, seguem lutando contra um mundo arcaico.
(Foto: Isis Medeiros/ Farpa)
Uma Câmara de Deputados e um Senado liderados por uma maioria de homens que decidem sobre as leis do país. A Igreja, uma instituição hipócrita que se nega a ver o número de mulheres mortas pela imposição da moralidade sobre gestações não intencionais, ditando as regras sobre o corpo e a vida de todas as mulheres, independente de suas crenças e costumes.
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Apesar dos tempos difíceis de retrocessos pelos quais estamos passando no mundo todo, não temos dúvidas de que as mulheres avançam organizadas. Na última década, as mulheres se uniram e se mobilizaram em prol da aprovação da lei de legalização do aborto seguro e gratuito em toda Argentina. Em treze anos, o projeto de lei criado por elas já foi apresentado no Congresso sete vezes. Em junho, houve uma grande comemoração, a nível mundial, quando a lei foi aprovada pela Câmara dos Deputados. Mas, infelizmente, no dia 8 de agosto, o projeto foi rejeitado pelo Senado. As mulheres conhecem muito bem a palavra "não", mas também conhecem a palavra "persistência" e, apesar da última derrota, não desistiram de lutar. No próximo ano (2019), irão apresentar a PL pela 8ª vez e prometem não parar enquanto a lei não for aprovada.
O movimento das mulheres, das nossas 'hermanas', não é simplesmente sobre abortar ou não, é pelo direito de decidirmos sobre nossos próprios corpos; é sobre zelar pelas quase 450 mil mulheres que, todos os anos, optam pelo aborto na Argentina; é sobre o destino de suas vidas, se abortarão de forma clandestina, correndo alto risco de morte, ou legalmente, com apoio, segurança e de forma gratuita.
Nos últimos meses, o assunto sobre a legalização do aborto dividiu o país em duas cores: de um lado a ‘onda verde’, de defensoras do projeto de lei, e do outro a ‘onda celeste’, como são chamados os azuis, contrários à aprovação e representados pelos setores mais tradicionais, conservadores e religiosos da sociedade. Os posicionamentos estavam ali, estampados nas cores das roupas, nas maquiagens, nas unhas das meninas, nos cortes de cabelos e, claro, nos pañuelos coloridos, que, há 13 anos, viraram símbolo da luta pela legalização do aborto. Foram muitos meses de campanha de ambos lados. As notícias sobre as lutas e resistências romperam as fronteiras do país e circularam mundo afora.
(Foto: Isis Medeiros/ Farpa)
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O que mais chama a atenção é o nível do debate que ocorre. Apesar de ser um país de maioria cristã, como no Brasil, o assunto do aborto tornou-se público, presente na boca do povo. É visível que está democraticamente colocado nas ruas, nos bares, nas escolas, no cotidiano dos argentinos. As pessoas estão, enfim, tirando o assunto da invisibilidade pública e debatendo com muito mais profundidade, algo que no Brasil ainda é um enorme tabu, censurado pela "moral e bons costumes', bem como pelo tal "cidadão de bem". Enquanto na Argentina 50 mulheres morrem por ano, no Brasil esse número salta para 182. A América Latina tem um dos maiores índices de aborto no mundo, sendo 95% deles ilegais e inseguros.
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A presença de homens, gays, lésbicas, travestis e pessoas trans na ‘Campanha Nacional pela Legalização do Aborto Legal, Seguro e Gratuito’ junto das mulheres foi de suma importância para o avanço dos debates sobre o assunto. Essa união reforçou que a luta pelos direitos e pela liberdade das mulheres não pode ser só uma luta feminina, é preciso que haja força social para frear o patriarcado que, há séculos, oprime de maneira generalizada a sociedade.
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O dia da votação foi intenso. Foram 16 horas de debate até que todos senadores fizessem suas escolhas. Além das marchas, músicas, decorações e intervenções artísticas, havia vários palcos com atividades culturais instalados nas ruas próximas ao Congresso. As mochilas das secundaristas e os cabelos das chicas levavam amarrados os pañuelos verdes. Também estavam presentes os opositores, que reforçavam nas ruas a campanha azul, contrária à lei. Durante vários dias, eles fizeram vigílias com orações diante do Congresso. Vários pastores passaram por lá e um padre atendia os fiéis dentro de uma espécie de confessionário móvel, que foi instalado no passeio da Praça do Congresso. Os ‘celestes’, evidenciavam patriotismo ao ostentar a bandeira nacional em suas intervenções. Houve presença forte de homens, que em comparação aos 'verdes', ali pareciam ser maioria.
(Foto: Isis Medeiros/ Farpa)
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Na manifestação, sobressaía-se o que elas chamam com carinho de ‘onda verde’, uma maré enorme de mulheres pintadas, nas ruas, entoando marchinhas e gritos de ordem, cantando juntas e emocionadas. A movimentação trouxe 2 milhões de pessoas e, apesar do frio e da chuva, que não deram trégua, o povo se manteve firme até o final da votação, que só se encerrou por volta de 2:30h da manhã (09).
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Mesmo já sabendo da possível derrota, as verdes resistiram unidas nas ruas até o fim. A todo tempo reforçavam nos microfones que a campanha tinha sido uma vitória das mulheres e que não desistiriam da luta pela aprovação da lei no país. O lado azul comemorou com fogos e logo se retirou das ruas.
(Foto: Isis Medeiros/ Farpa)
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Passada uma semana, os pañuelos verdes ainda continuam circulando pelas calles de Buenos Aires e o que se ouve, das mulheres que os usam, é que não há mais volta, não vão abandonar a causa. Para elas não há mais regresso. Ou avançam, ou avançam. Já não há outra possibilidade, senão a liberdade!
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